Não tenho os primeiros desenhos ou letras guardadas em papel. Também acho difícil que um dia eles tenham ido parar na porta da geladeira ou na robusta estante de madeira da casa. Se em um momento esses rabiscos pareceram troféus de meninice, deve ter sido bem rapidamente. Porém, há linhas mal traçadas que ainda permanecem intactas na memória, dando voltas indistintas e cheias de cor. Escassas, mas, sim, vivas.
Nos primeiros dois anos da escola, quando a iniciação era apropriadamente chamada de maternal e jardim, a impressão que eu tinha do ambiente era bem próxima a um lugar cheio de flores e de quase mães, as tias. Eram elas que davam vazão às brincadeiras e criatividade. Logo que a aula começava, era a hora de brincar de massinha. Não me lembro das formas finais, as cores parecem meio borradas, mas o cheiro permanece intenso. Tão cheias de vida aquelas cobrinhas enroladas sobre a mesa estampada de anjinhos.
Nas paredes, os triunfos de cada aprendizado coloriam a sala com desenhos, linhas unindo figuras associadas e estrelas douradas no canto direito da página, lá no alto. Elas, sim, pareciam o verdadeiro troféu. Havia também as folhas borradas de cola, repletas de pequenas digitais e texturizadas com caroços de feijão, milho, arroz. Era o desenho que crescia e quase saltava da página.
Na hora do recreio, a lancheira de metal era aberta com todo cuidado para não amassar. Recomendações de casa. Dentro da caixinha, suco, biscoitinho ou uma banana faziam desejar o salgado da cantina. Nos dias em que levava alguma moeda, o melhor momento era ficar na fila para escolher o que comer – coxinha, pastel, quanto mais distante de casa fosse a comida, melhor.
Havia também os dias de fazer o próprio lanche. Diversão na certa. As crianças sentavam no chão ou nos bancos de cimento da área de lazer e ali mesmo ajudavam as tias a cortar banana, mamão e laranja para a salada de fruta. As mãos pegajosas cheias de incertezas, mas ávidas por aprender. A algazarra era tão grande que era bem possível que o dia da salada fosse o mesmo do banho de bica no pátio. Água quente batendo no cimento, mas o melhor banho de criança que pode existir.
Essa era época de bem poucos anos. Cinco, no máximo. Nos seguintes, as letras me foram apresentadas pela tia Beth. Uma tia gorda, cabelo curto, escuro e quase do nosso tamanho. Era também a mãe da Larissa, que era minha amiga junto com a Bárbara. Durante anos, ainda menina, sonhava ser mãe e colocar o nome da minha filha de Bárbara. Não sabia, mas seria uma homenagem a primeira melhor amiga da escola. Nunca mais conheci uma Bárbara, também não vi mais aquela, mas sei que era loura e branca como a Amiguinha.
Mais loura ainda era a tia Cláudia, da 1ª série. Linda a tia Cláudia. Sempre com batom, cabelo ondulado e bailarino. É desse ano a lembrança dos primeiros livros, aqueles quadrados, cheios de figuras e muito expressivos. Tão sábio o Maneco Caneco Chapéu de Funil. Como era possível morar em uma panela de arroz ou descobrir o caminho do pobrezinho do grão de café até chegar ao bule?
Nas infinitas vezes em que adormeci com Maneco, era ele que me fazia viver aventuras sem descer da rede. Também tinha a tartaruga que, sabida que só ela, conseguiu chegar à Festa no Céu com seus passinhos lentos cheios de paciência. Cada livro era um mundo. Tão fininhos, mas vastos e robustos a cada folhear.
Dos anos seguintes, ainda posso ouvir o ritmo das multiplicações, principalmente da casa do sete. Sim, porque até a casa do cinco era fácil. Inteligente era quem conseguia passar do seis. E, chegando ao 9x9 sem pestanejar, no máximo o olho deslizando à esquerda para o pensamento se aprumar, era bonito demais. O peito repleto de segurança.
Dali em diante, feitas as contas, os números foram ficando cada vez mais distantes. Amigas mesmo eram as letras. Como é que elas conseguiam, de uma em uma, unidas e versáteis, transformar uma bola em balão e explicar o universo? Esse mistério se virou sedução. Nas primeiras páginas das redações, o desafio de expressar sentimentos e fatos a partir das palavras ganhou feições: de descoberta, a escrita passou a desabafo, ofício e definição de uma vida inteira. É bem provável que o Maneco, esperto como apenas ele poderia ser, fizesse uma boa receita com essas letras dentro da casa de panela.